Farinha não! aqui é gari, meu irmão!
Uma Carta de Lagos para os Amigos do Axé na Bahia
Meus irmãos e irmãs do Santo. Escrevo de minha residência na LASU Lagos State University (Nigéria), após quinze dias de imersão total nesta terra que é nossa e, ao mesmo tempo, tão estrangeira. E antes que me perguntem sobre os Orixás, os itans ou os mistérios de Exu, Oxum, Obatalá e Ifá, deixem-me contar sobre minha busca épica pela farinha de mandioca!
Ah, baianos! Se vocês vissem a comédia que está este doutorando, no Baianês, me sinto O comédia, supostamente "preparado academicamente", perambulando pelas ruas de Lagos com meu inglês "nigeriano-Baianês" tentando explicar que precisava daquilo que nas cozinhas de nossos terreiros Ketu chamamos simplesmente de” efum,” farinha.
"Cassava flour?", perguntei orgulhoso em meu inglês forjado nas urgências acadêmicas, já que aqui o inglês é idioma oficial. Blank faces por toda parte. "Efum?", arrisquei, pensando no iorubá litúrgico que conhecemos nos candomblés de Ketu. Mais blank faces ainda! Andei cinco quilômetros - sim, cinco quilômetros! - sob o sol que Oxalá certamente colocou aqui para nos lembrar que a África não é para amadores, sim para fortes e resistentes, até que uma senhora, cheia de netos peraltas, pretinhos como a bela noite da minha Quebrada Bairro de Òjó, perto de Jagum Strire , com a dignidade de uma rainha Nanan me olhou com piedade e disse: "O que você quer é GARI, meu filho!"
GARI! O nome que nunca ouvimos nas nossas cozinhas sagradas! Nem a nossa respeitada Iya Bassê Alga de Iemanjá sabia desse ebó de boca...
Pensei eu Gari, em Camaçari/Ba é outo rolê... O brother da limpeza publica o irmão da LIMPEC ou LIMPURB em Salvador?
Mas esta busca por farinha tornou-se minha verdadeira iniciação acadêmica. Percebi, meus amigos e amigas, que o território iorubá não é a África romantizada que imaginamos na Bahia. É um lugar de contradições vibrantes:
A pobreza aqui não é conceito abstrato - é realidade visceral que espreita em cada esquina, convivendo paradoxalmente com inteligências brilhantes. O trânsito de Lagos faz a Avenida Vasco da Gama parecer um tranquilo domingo em Camaçari! E as mulheres... ah, as mulheres nigerianas! São de uma beleza que dói nos olhos e uma inteligência que desafia qualquer academicismo eurocêntrico.
E o acarajé? A C A R Á, Aqui eles fritam no óleo de soja E no dendê também, meus irmãos! Uma heresia culinária que paradoxalmente faz sentido neste lugar onde tudo se transforma e se reinventa.
Descobri negros cientistas brilhantes – Professores de Literatura que escreve em árabe e em português simultaneamente, Filósofos e Babalawôs ao mesmo tempo, Matemáticas que contam o público do BA x VI em frações de segundo, PhDs em física quântica que também são filhos de Ogum - e uma presença islâmica que convive harmonicamente e belicamente com os Orixás, desafiando nosso sincretismo baiano e o mais scroto neopentecostal neofacista a ser cristão de verdade...
Estou me preparando para ir a Ile-Ifé, no estado de Oxum, onde finalmente entrarei em contato com a fonte de nossos saberes. Mas confesso: Estes quinze dias em Lagos já me ensinaram mais sobre a diáspora do que anos de leitura acadêmica, `” tá barril pivete”, como diz meus filhos biológicos....
A África, meus amigos, não é o museu ancestral que imaginávamos. É um organismo vivo, pulsante, contraditório, intelectual e magnificamente complexo. E eu, aqui, aprendendo que às vezes a maior sabedoria começa com a humildade de não saber onde comprar farinha de mandioca!
Quando voltar, trarei na bagagem não só o GARI para nossas obrigações, mas histórias que vão fazer nossos gogós durarem horas a fio.
Axé de Lagos!
Seu amigo baiano-nigeriano,
João Borges. Juro que quando ouvi "GARI" pela primeira vez, meu primeiro pensamento foi: "Oxalá, como vou explicar isso para os Egbomis ?"
João Borges é artista , filosofo, historiador, Babalorixá e doutorando em Difusão do Conhecimento https://instagram.com/joao_borges256?igshid=YmMyMTA2M2Y=https:// www.facebook.com/joao.borges.148
Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade do autor
30outubro2025
