Vaias, ambulâncias e a farsa da regionalização da saúde
Passei o feriado prolongado de São João na Chapada Diamantina, especificamente na cidade de Mucugê. Foram dias de intensa atividade física, cultural e de muita diversão. Mas, em meio às celebrações, a política se fez presente — e de maneira ruidosa. O governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, foi duramente vaiado ao aparecer no circuito da festa no domingo, dia 22, e se retirou rapidamente. Situação semelhante aconteceu no dia anterior, em Livramento de Nossa Senhora.
Retornei a Camaçari na terça-feira, dia 24, enfrentando um longo engarrafamento na BR-324, entre Feira de Santana e a entrada do Canal de Tráfego. Um fato, porém, me chamou mais atenção do que o trânsito parado: contei cerca de 40 ambulâncias de diversos municípios baianos, todas em deslocamento para Salvador. Um retrato cruel da saúde pública na Bahia, onde a “ambulancioterapia” virou rotina — e tragédia.
Esse cenário escancara o fracasso da regionalização da saúde no estado. Embora a Portaria nº 1.559/2008 do Ministério da Saúde institua a Política Nacional de Regulação, com ênfase na organização de redes regionalizadas e hierarquizadas para garantir acesso, resolutividade, equidade e eficiência, a realidade baiana é outra. A gestão estadual segue padecendo da velha e nociva síndrome da centralização.
Segundo o Plano Diretor de Regionalização (PDR/BA), a Bahia está dividida em 28 regiões de saúde e nove macrorregiões. No papel, tudo parece funcionar. Na prática, Salvador concentra mais da metade dos leitos de UTI do estado (55,6%, segundo o DATASUS/2022), e apenas 22 dos 417 municípios baianos possuem esse tipo de leito. O resultado é um sistema de saúde onde pacientes são transportados por longas distâncias, em situação de emergência, em busca de atendimento hospitalar.
A política de saúde pública não se resume a inaugurações ou à mudança de perfil assistencial de hospitais. Os 20 anos de gestão petista na Bahia deixaram marcas profundas: redução líquida de mais de mil leitos hospitalares entre 2007 e 2022, e um gasto médio que mal ultrapassa 2% acima do mínimo constitucional obrigatório. O que falta é planejamento territorial sério, alinhado às necessidades reais da população e com foco na descentralização de fato.
Desde março de 2020, a Central Estadual de Regulação foi incorporada à Central Integrada de Comando e Controle da Saúde, desativando as centrais das macrorregiões. Hoje, todo o processo regulatório de oito das nove macrorregiões está centralizado em Salvador — um retrocesso institucional gravíssimo. Apenas a Macro Norte (Juazeiro) mantém alguma autonomia, por integrar a Rede PEBA (Pernambuco-Bahia).
A Regulação em Saúde deve ser um instrumento técnico, sanitário e ético, como previsto na própria Portaria nº 1.559/2008. No entanto, virou um espaço atravessado por interesses políticos, favores e listas paralelas. A valorização do médico regulador como autoridade sanitária é urgente, assim como a garantia de sua autonomia técnica e do acesso à informação em tempo real. Sem isso, continuaremos com uma Regulação cartorial, lenta e desumana.
Outro problema grave é a atuação da Secretaria Estadual da Saúde na Atenção Primária à Saúde (APS), assumindo funções que deveriam ser dos municípios. Em vez de fortalecer a gestão local com apoio técnico e financeiro, o Estado organiza mutirões, feiras de saúde e administra policlínicas regionais via consórcios interfederativos ou organizações sociais. A política pública é substituída por marketing eleitoral e substituição institucional indevida.
As policlínicas, por sinal, são estruturas com qualidade técnica, mas com impacto reduzido na regulação de leitos hospitalares e no fluxo do cuidado. Integrá-las verdadeiramente à rede assistencial e fortalecer hospitais microrregionais é uma estratégia viável e coerente com os princípios do SUS — desde que blindada contra o clientelismo e a politização.
E há ainda a cruel realidade da “porta fechada” do SAMU. Ambulâncias lotam os pátios dos hospitais à espera de vaga para internação. Em muitos casos, sequer conseguem entregar o paciente. Urge resgatar o modelo de “porta aberta” para urgências graves, uma medida humanitária e ética que coloca a vida acima da burocracia.
O maior desafio da saúde na Bahia não é técnico. É político-institucional. Regionalização não se faz com promessas de campanha ou obras de fachada. Exige planejamento ascendente, participação ativa dos municípios, pactuação regional, financiamento justo e gestão ética e autônoma.
Diante disso, não surpreende que o governador tenha sido vaiado. A população baiana convive com a dor de ver a saúde pública se transformar em uma fila de sofrimento — apelidada de “fila da morte”. Soma-se a isso o fato de vivermos no estado com maior número de homicídios, maiores índices de desemprego e desempenho educacional entre os piores do país.
A saúde não pode mais ser usada como palanque. Ela precisa ser tratada como prioridade, com base em evidências, equidade e compromisso com a vida. A Portaria nº 1.559/2008 não é apenas uma norma burocrática: é um chamado à responsabilidade sanitária. Que a Bahia finalmente escute.
Luiz Duplat duplat.luiz@hotmail.com é médico obstetra, especialista em saúde da família e ex-secretário de saúde de Camaçari
Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade do autor
29/junho/2025