A queda no fornecimento de componentes e redução da demanda no mercado interno com o agravamento da pandemia levou à paralisação total ou parcial de 13 das 23 montadoras de automóveis do país. De acordo com dados são da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), são 29 fábricas paradas, de um total de 58.
Com a parada de produção, especialistas no setor automotivo estimam que até 300 mil veículos podem deixar de ser produzidos esse ano. E entre 60% e 70% dos cerca de 105 mil empregados diretos do setor estão em casa nesse momento.
Entre janeiro e fevereiro, durante a crise de falta de oxigênio em Manaus, ao menos quatro fabricantes de motocicletas da Zona Franca paralisaram temporariamente a produção, segundo a Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo). Outras indústrias da região tiveram que reduzir turnos devido ao toque de recolher imposto para conter a proliferação do vírus no Estado.
A Volkswagen foi a primeira montadora a anunciar a suspensão da produção no país, no dia 19 de março. Nos dias seguintes, os anúncios de parada se sucederam. Algumas das empresas apontaram a falta de componentes como motivo para redução da produção, caso da Volvo e da GM.
De acordo com o último levantamento da Anfavea, realizado no final de março, estavam paradas: Mercedes, Renault, Scania, Toyota, Volkswagen, Volkswagen Caminhões e Ônibus, BMW, Agrale, Honda, Jaguar e Nissan. GM e Volvo não pararam totalmente, mas reduziram substancialmente a produção.
As paralisações começaram em 24 de março e as empresas planejam voltar entre 5 de abril e o final de maio. Mas os analistas avaliam que as paradas podem ser estendidas, dependendo do andamento das medidas de isolamento social nos estados e municípios, já que em muitos deles as concessionárias estão fechadas, impedindo as vendas.
No início do ano, a projeção mediana do mercado para o avanço do PIB em 2021 era de 3,4%, após queda de 4,1% registrada em 2020. No boletim Focus do Banco Central mais recente (de 29/3), a previsão de crescimento para esse ano já estava em 3,18%. Mas os mais pessimistas já apostam em números abaixo dos 3%.
Conforme Milad Kalume Neto, gerente de desenvolvimento de negócios da Jato Dynamics, são dois os motivos principais que levaram à onda de paralisações nas fábricas brasileiras de automóveis. "O primeiro motivo é a falta de peças, decorrente de logística internacional, e problemas de suprimento, principalmente de semicondutores", afirma o consultor.
Segundo o especialista, o déficit de produtos se deve à recuperação da economia chinesa. O país asiático é o maior produtor de chips do mundo e tem priorizado seu mercado interno na retomada, em detrimento da exportação para outros países.
Além disso, os semicondutores também são usados pela indústria de notebooks, computadores, consoles de videogame, televisores e celulares, produtos cujas vendas cresceram muito na pandemia, devido à permanência das pessoas em casa.
"Em paralelo a isso, há também a diminuição das vendas em função da paralisação dos grandes centros urbanos pela segunda onda da covid", diz Kalume Neto.
De acordo com dados da Fenabrave, associação que representa as concessionárias, no acumulado de janeiro e fevereiro desse ano, foram emplacados cerca de 339 mil veículos no Brasil, entre carros, comerciais leves, caminhões e ônibus.
O montante representa uma queda de 14% sobre o mesmo período de 2020, sob impacto também do aumento de ICMS sobre a venda de veículos em São Paulo, estado que responde por mais de 23% da venda de carros novos e 40% das transações de usados no país.
Com a parada de produção, a Jato Dynamics, consultoria especializada no mercado automotivo, revisou sua estimativa para a quantidade de carros que deve ser vendida no Brasil esse ano, de uma estimativa de 2,3 milhões a 2,4 milhões no início do ano para 2,1 milhões. Em 2020, foram vendidos 1,95 milhão de veículos. Já a Bright Consulting cortou sua projeção de 2,45 milhões para 2,38 milhões.
Diante de um ano que começou com o anúncio da saída da Ford do Brasil e que registra já em março paradas significativas na maior parte do setor automotivo, naturalmente surge a dúvida: outras montadoras podem seguir a americana e deixar o país?
Para Kalume Neto e Pagliarini, da Jato Dynamics e da Bright Consulting, esse é um cenário que não pode ser descartado, mas não é o mais provável no curto a médio prazo. Pagliarini explica que a saída da Ford está ligada à decisão da empresa de se dedicar à produção de pick-ups, vans e SUVs (veículos utilitários esportivos), veículos eletrificados e o modelo de luxo Mustang. Com isso, a companhia decidiu abandonar a produção de hatchs e sedans, os dois modelos mais populares no Brasil.
Além disso, a empresa foi contemplada por benefícios fiscais no país durante 15 anos, entre 2003 e 2018. Com o encerramento desses benefícios, a Ford não tinha rentabilidade na fábrica de Camaçari, na Bahia. "Veio a pandemia e acelerou tudo", diz o analista da Bright Consulting, explicando que, diante da mudança de estratégia da empresa e da falta de rentabilidade e ociosidade de suas fábricas no Brasil, a queda de demanda causada pela pandemia acelerou o processo de tomada de decisão quanto à saída do país.
Assim, Pagliarini destaca que o caso da Ford teve particularidades. Mas é preciso levar em conta que a capacidade instalada no Brasil é para a produção de 4,8 milhões de veículos por ano e estão sendo produzidos atualmente praticamente a metade disso. "Tem mais de 2 milhões de capacidade ociosa no país", destaca o analista. "Com a diminuição do mercado, existe sempre o risco de uma empresa acabar saindo, mas não está no horizonte nenhuma fábrica ser fechada no mercado brasileiro atualmente", avalia Kalume Neto, da Jato Dynamics.
Quanto à manutenção do emprego nas fábricas, os analistas avaliam que tudo vai depender da extensão das paradas de produção. "Historicamente, antes da última crise, a indústria nacional trabalhava com 125 mil, 130 mil funcionários", lembra Kalume Neto. "Estamos hoje entre 100 mil e 105 mil, então já houve uma diminuição e isso é muito visível quando se visita as montadoras."
Segundo o analista, a segunda metade de 2020 foi de retomada da produção e do emprego, mas esse processo agora pode ser interrompido. "Com esse novo ciclo da pandemia, as empresas estão em espera. Não estão demitindo, mas estão examinando o mercado."
Essa também é a avaliação de Renato Almeida, vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região e trabalhador da GM.
A montadora anunciou em março a parada de suas plantas de São Caetano do Sul (SP) e Gravataí (RS) por falta de componentes eletrônicos. Em São José dos Campos (SP), 600 trabalhadores foram colocados em lay-off por dois meses - eles se somam a outros 368 funcionários que já estavam com contratos suspensos desde o ano passado.
"Vemos com muita preocupação a atual situação econômica e política do Brasil. Soma-se a isso agora essa crise sem precedentes de falta de peças, que desorganizou todo o parque industrial brasileiro", diz Almeida.
"Fizemos o acordo de lay-off com a direção da empresa com estabilidade do emprego, o que significa que não pode haver demissões por dez meses, nem para quem está na fábrica hoje e nem para os trabalhadores do lay-off", afirma.
"Isso nos dá uma certa segurança, mas nada é certo. Quantos acordos já não foram rasgados pelas montadoras? A própria Ford tinha acordo de estabilidade até 2021 e acabou determinando o fechamento das plantas", lembra o sindicalista. G1