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Samuelita Santana


Era uma vez a Justiça....



Nem sempre qualquer semelhança é mera coincidência. A força-tarefa que revelou de forma assombrosa para o mundo uma rede gigante de corrupção que dominava a cena política e econômica da Itália nos anos 90, hoje, quase 30 anos depois, virou poeira. Em dezembro de 1994, o procurador que tornou-se símbolo da operação Mãos Limpas (Mani Pulite), Antonio Di Pietro, num gesto inesperado após uma audiência no Tribunal de Milão, retirou a toga diante dos colegas, do público e das câmeras, colocou uma gravata e declarou a sua saída do pool histórico de investigadores que àquela altura vinha dinamitando o esquema de pagamento de propina envolvendo empresários, agentes públicos, parlamentares e mafiosos, além do desvio de recursos públicos para o financiamento de campanhas políticas.


O gesto surpreendente de Di Pietro - que pode ser assistido aqui nesse link do Youtube https://bit.ly/33zmPQE - não se deu por acaso. "Saio de fininho e com a morte no coração", disse na época. O procurador estava acuado. À medida que as investigações revelavam os poderosos tentáculos da corrupção e se aproximavam do primeiro ministro Silvio Berlusconi e suas empresas, o cerco perverso se afunilava sobre os investigadores. Ministros enviavam inspetores para apurar supostas irregularidades da força-tarefa e ameaças de representações de denúncias por atentado à Constituição era apenas o começo.


Nada foi encontrado e apesar da improcedência dos ataques, as acusações contribuíram para gerar um clima de deslegitimação em toda a operação. Isso sem falar nas ameaças de morte enviadas a Di Pietro e sua família pelo grupo terrorista Falange Armata. Na mira da máfia siciliana e para escapar de um possível atentado, Pietro e sua mulher foram obrigados a se refugiar por um tempo na Costa Rica, usando nomes falsos.


Por conta das acusações o pool de investigadores foi alvo de processos e de diversas ações disciplinares, movidas pelos investigados e até pelo Ministério da Justiça. Os procedimentos recaiam principalmente sobre os três mais combativos procuradores, que eram Di Pietro, Piercamilo Davigo e Gherardo Colombo. Nada foi detectado. Acusações de corrupção passiva que acabaram em absolvições e arquivamentos foram também movidas contra Di Pietro, ao tempo em que dossiês anônimos e falsos começaram a circular nos ambientes políticos e nas redações de jornais, acusando o procurador de ser usuário de drogas e agente secreto do FBI. Especulava-se na época que os dossiês haviam sido fabricados por agentes do serviço secreto a mando de políticos de alto escalão.


Os golpes não pararam por aí. O clima antes favorável à Operação Mãos Limpas foi ficando estranho entre a população. A grande mídia, principalmente as TVs e jornais do grupo Berlusconi que apoiavam abertamente a força-tarefa, mudaram o posicionamento quando empresas e pessoas ligadas ao milionário entraram na mira da investigação. A amplitude da operação, que saiu do ninho político e atingiu outras faixas da população, criou temores que se agravaram com a onda de suicídio de presos e investigados.


De 1992 quando a operação começou, até 1994, nada menos que 31 pessoas se mataram, chocando a opinião pública. Os próprios investigadores, como observou Colombo em uma entrevista, avaliaram que cidadãos médios, habituados a viver de expedientes, tráfico de influência e pequenos subornos passaram a enxergá-los como um pool de ¨moralistas" que queriam atingir a sociedade inteira. A pressão para que a operação acabasse partia agora de todos os lados.


A estratégia para desmoralizar os procuradores e lançar suspeição sobre a legalidade da força-tarefa estava funcionando. A vingança maligna abarcou amplo espectro político, da direita à esquerda. Quando esteve no Brasil participando de simpósio Lava Jato e Mãos Limpas, Percamilo Davigo comentou que durante todo o trabalho de investigação tanto o centro-direita como o centro-esquerda sempre se esforçaram não para combater a corrupção, mas para combater as investigações sobre a corrupção. Alguém percebe alguma semelhança com o que vem ocorrendo com a Lava Jato no Brasil ou será mera coincidência? 
"Salva Ladrões"
Em 1994, mal havia sido eleito primeiro-ministro, o outsider Berlusconi baixou decreto soltando todos os investigados da Operação Mãos Limpas detidos preventivamente, retardando e anulando diversos processos. A medida foi batizada pelo povo italiano de "salva ladri" (salva ladrões). Olha de onde veio a lição que o nosso STF aprendeu! O decreto durou só uma semana por um detalhes muito simples que a Lava Jato e o Brasil inteiro também deveriam copiar. Não com tanto fôlego mas ainda contando com o apoio de parte da população o pool de investigadores fez pronunciamento na TV  ameaçando se demitir em peso caso a medida não fosse revista.


O Parlamento italiano, por pura pressão, revogou o decreto. Embora os estragos já estivessem sido feitos. Foi a partir daí que a classe política se animou e passou a achar brechas e a inventar todo tipo de manobra, criando decretos e alterando leis para impedir o avanço do combate à corrupção. A ideia era mesmo anular o que se apurou e neutralizar os efeitos das investigações criminais.
Os parlamentares fizeram tantas intervenções no direito penal da Itália que a ONU chegou a enviar um observador internacional para acompanhar a independência do Poder Judiciário. Eles reduziram a prescrição para casos de corrupção e modificaram crimes como o de abuso de ofício e o de falsificação contábil, instrumentos importantes para o rastreamento de desvio de recursos. Alguém percebe outra semelhança por aqui? Ora, o projeto de abuso de autoridade já sancionado pelo presidente Bolsonaro, a despeito de seus argumentos jurídicos e de direito, é o retrato da intimidação ao trabalho de juízes, promotores e policiais.


Mas os golpes contra a Lava Jato orquestrados para desestabilizar o staff da investigação, começaram estrategicamente antes, quando o Supremo Tribunal Federal decidiu tirar as investigações sobre caixa dois da Justiça Federal, direcionando a questão para a Justiça Eleitoral. Ô que alívio para os senhores políticos! Depois veio a sinfonia do site The Intercept, do editor Glenn Greenwald, financiado pelo bilionário francês de origem iraniana, Pierre Omidyar, que começou a publicar em doses homeopáticas supostas mensagens trocadas entre membros da força-tarefa.


Na sequência, o supremo Dias Toffoli suspendeu todos os inquéritos em que houve compartilhamento de dados do COAF, a pedido do filho do presidente, Flávio Bolsonaro, investigado pelo MP, criando dificuldades para o levantamento de informações sobre corrupção e outros crimes financeiros, o que levou membros da Lava Jato a prenunciarem o fim da operação. O mesmo ministro supremo, Dias Toffoli, deu o voto de minerva no julgamento de execução de pena em 2ª instância, tirando da prisão presos da Lava Jato entre eles Lula e José Dirceu, além de outros cerca de 5 mil condenados que também podem se safar.


O procurador Deltan Dalagnoll cantou essa pedra: " No fim da Mãos Limpas na Itália, a pauta contra supostos abusos de justiça substituiu a pauta anticorrupção sem que esta fosse aprovada. Várias leis passaram para garantir impunidade aos poderosos. A Itália segue com os maiores índices de corrupção da União Europeia". Ah! e como será no Brasil?
Diante de tantas semelhanças, que não são meras coincidências fica o perplexo questionamento: Porque uma operação de combate ofensivo à corrupção sistêmica e à impunidade sofre tantos ataques e enfrenta duras resistências de parlamentares e da própria Justiça, mesmo depois de resultar em mais de 200 condenações, com processos sentenciados em mais de 3 mil anos por lavagem de dinheiro, corrupção ativa e passiva, fraude à licitação, evasão de divisa, organização criminosa e até tráfico de drogas? Com um histórico revelando o envolvimento de políticos, doleiros, empresários e agentes públicos? Ainda com o crédito de trazer de volta aos cofres públicos nada menos que R$ 2,5 bilhões, sem falar nos acordos de leniência com ressarcimento de R$ 13 bilhões, além de outros R$ 11,5 bilhões a serem devolvidos para o erário, inclusive para a Petrobras e já acordados com a Justiça Federal? Que outra chance o Brasil vai ter de avançar contra a impunidade por crimes praticados pelos figurões de colarinho branco e deixar de reafirmar vergonhosamente que só os pobres infratores vão pra cadeia? E os ricos para onde bem quiserem!?


No meio dessa reflexão que é de todo brasileiro, vale reproduzir um trechinho do artigo escrito pelo ex-juiz da Lava Jato, Sérgio Moro, ao prefaciar a versão em português do livro Operação Mãos Limpas, dos jornalistas Gianni Barbacetto, Peter Gomez e Marco Travaglio: " A corrupção ou a prática de suborno, com pagamento de vantagens indevidas por agentes privados e agentes públicos, sempre existirá. Homens não são anjos. Constituem amálgama de vícios e virtudes e mesmo em regimes utópicos pode-se cogitar que sempre haverá aqueles dispostos a decaírem"


Samuelita Santana samuelitasantana@hotmail.com é jornalista


Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade do autor


 
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