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José Carlos Teixeira no Colunistas: O fim da Missa do Vaqueiro


José Carlos Teixeira é jornalista e especialista em marketing político, mídia, comportamento eleitoral e opinião pública

Apagamento cultural transforma Missa do Vaqueiro em festival de música sertaneja


“Numa tarde bem tristonha
Gado muge sem parar
Lamentando seu vaqueiro
Que não vem mais aboiar”
(A morte do Vaqueiro, de Luiz
Gonzaga e Nelson Barbalho)


A Escola Borges dos Reis ficava na Rua Farmacêutico José Alves, esquina com a Baixinha da Égua, bem no alto da ladeira, a dois passos da Rua da Aurora, em Feira de Santana. Foi lá que aprendi as primeiras letras e comecei a descobrir o mundo, pelas mãos da professora Ezelvir.


Às segundas-feiras, no lado oposto da rua, bem em frente da escola, funcionava uma espécie de estacionamento para cavalos. Servia aos vaqueiros que vinham das fazendas de Jaíba, Jaguara, Ipuaçu, Tiquaruçu, São José das Itapororocas, Matinha e de outras localidades da zona rural para a grande feira-livre que se espalhava por cerca de 12 quilômetros de ruas no centro da cidade.


Eles deixavam ali os cavalos selados, amarrados em mourões fincados no terreno, e seguiam a pé, como se tangerinos fossem, mas envergando, garbosos, o traje típico do vaqueiro nordestino: perneiras, luvas, parapeito, gibão, alpercata e chapéu, tudo confeccionado em couro cru, que o processo rudimentar de curtição deixa num tom ferrugem.


A chegada deles a cavalo, de manhãzinha, era uma visão fascinante para os pequenos escolares que também chegavam para a aula. Não se pareciam com os vaqueiros dos gibis que meu tio Zé costumeiramente me mandava do Rio de Janeiro, pelos Correios, em pacotes ansiosamente esperados. Eram um tipo de diferente de heróis, com aquela vistosa armadura de couro.


Como os heróis do faroeste americano retratados nas revistas em quadrinhos – Tex Willer, O Pequeno Xerife, Roy Rogers, Rocky Lane, Tom Mix e muitos outros – eram vaqueiros de coragem. Eu mesmo já os vira disparar corajosamente atrás de uma ou outra rês fugida, quando passavam, vindos pela estrada do Calumbi, levando boiadas para o Campo do Gado.


“O boi correu, botem os meninos pra dentro de casa”, gritavam os vizinhos, alarmados. Mas, mesmo dentro de casa, a gente sempre achava uma fresta para espiar o vaqueiro em seu cavalo disparado atrás do boi fujão até integrá-lo novamente à boiada.


As imagens da infância me vêm à mente, tantos anos depois, ao ler em jornais de Pernambuco, pela internet, algumas matérias sobre o processo de apagamento cultural em andamento na cidade de Serrita. Lá, no sertão pernambucano, há 54 anos é realizada a Missa do Vaqueiro, por iniciativa do cantor e compositor Luiz Gonzaga e do pároco de então, o Padre João Câncio.


A missa foi a forma encontrada pelo Rei do Baião para celebrar a memória do vaqueiro Raimundo Jacó, assassinado em julho de 1954. O corpo foi encontrado em uma vereda da caatinga, em uma área onde hoje se encontra o Parque Nacional do Vaqueiro.


Desde então, até a sua morte em 1989, Luiz Gonzaga, que era primo de Jacó, participava da missa, tocando e cantando para os vaqueiros devidamente encourados com seus trajes típicos que acorriam à celebração – reconhecida mais tarde como patrimônio cultural e imaterial de Pernambuco.


Pois bem, meu caro leitor, não é que a prefeitura de Serrita, por meio de um projeto de lei já encaminhado à Câmara de Vereadores local, pretende agora trocar o nome da celebração de “Missa do Vaqueiro” para “Festa de Jacó” – já então transformada em um festival desses que proliferam Brasil afora tendo como atrações aqueles cantores sertanejos de elevados cachês.


É mais um caso de apagamento cultural, como o foi a defenestração dos Encourados de Pedrão do desfile do Dois de Julho. O grupo, formado por vaqueiros a cavalo usando seus trajes típicos, foi impedido de participar do cortejo, supostamente para proteger a saúde dos animais – como se houvesse alguém mais preocupado com os animais que o vaqueiro com o seu cavalo.


Com isso, apagou-se do desfile do Dois de Julho a celebração da memória dos vaqueiros de Pedrão que deixaram a lida do gado, munidos apenas dos aguilhões de tanger boi, para lutar ao lado das tropas que expulsaram os portugueses e consolidaram a Independência na Bahia.


Mas é vida que segue. Saíram do desfile do Dois de Julho os cavalos dos vaqueiros encourados de Pedrão e entraram os automóveis para conduzir autoridades. Uma “tradição” baiana inaugurada no ano passado e que, tudo indica, veio para ficar. Ao menos até que – quem sabe? – voltem os dias em que governantes andavam a pé ao lado dos governados, como aconteceu durante dois séculos no cortejo que celebra a data magna da Bahia.


José Carlos Teixeira   zecarlosteixeira@uol.com.br é jornalista, formado em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado em marketing político, mídia, comportamento eleitoral e opinião pública pela Universidade Católica do Salvador


Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade do autor

27/07/2024

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