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Fiocruz descumpre prazos para vacinas e vira motivo de críticas

Em 31 de julho do ano passado, quando o governo anunciou um acordo para produzir no País a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e comercializada pela farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca, era difícil imaginar que a Fundação Oswaldo Cruz, a quem caberia levar a cabo a missão, iria se tornar alvo de críticas generalizadas e até de piadas entre cientistas e profissionais de saúde, por causa de atrasos em série na entrega do imunizante e de previsões fantasiosas feitas por seus dirigentes.


Ao longo de seus 120 anos de existência, a Fiocruz construiu uma reputação irretocável no Brasil e no exterior, pela qualidade de suas pesquisas, por sua atuação no enfrentamento de epidemias e pela eficiência na produção de diversas vacinas. Até o Papa Francisco enviou uma mensagem à Fiocruz no fim de 2020, elogiando sua atuação na pandemia. A expectativa, portanto, era de que a instituição liderasse a produção de vacinas contra o coronavírus, garantindo a agilidade necessária ao processo de vacinação, e adotasse uma postura ponderada em suas previsões de entrega, transmitindo à população um quadro realista sobre as perspectivas de imunização.


Ainda que o Instituto Butantan, ligado ao governo de São Paulo, tivesse largado na frente na corrida pela vacina, ao negociar uma parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac para produção da Coronavac, boa parte da comunidade médica e científica do País apostava que a Fiocruz, vinculada ao Ministério da Saúde, acabaria por assumir o protagonismo na luta contra o vírus.


Mas, passados dez meses desde a assinatura do primeiro contrato do governo com a AstraZeneca, o que se observa é que a Fiocruz desempenhou até agora um papel secundário no processo de imunização, apesar de ter turbinado a produção e as entregas de vacinas a partir de abril. De acordo com números do Ministério da Saúde, das 46,4 milhões de doses de vacinas contra covid já aplicadas em todo o Brasil até 6 de maio, incluindo a primeira e a segunda doses, só 11 milhões, o equivalente a 24% do total – ou uma em cada quatro – foram do imunizante Oxford/AstraZeneca produzido pela Fiocruz. O restante foi de Coronavac, fabricado pelo Butantan. (A vacina da Pfizer/BNTech importada pelo governo, que começou a ser aplicada na semana passada, ainda não havia aparecido nas estatísticas oficiais.)


A rigor, a participação das vacinas efetivamente produzidas pela Fiocruz no total de doses aplicadas até o momento é ainda menor, já que quatro milhões de doses prontas de AstraZeneca foram importadas da Índia e estão somadas à sua produção no balanço do ministério. Descontadas as doses indianas da conta da Fiocruz, que praticamente só colocou o seu rótulo nos frascos, o saldo de vacinas produzidas pela instituição e já aplicadas na população cai para 7,1 milhões de doses, o equivalente a 15,3% do total ou uma em cada 6,5 doses administradas até agora no País (veja o gráfico). 


Esse desempenho acabou prolongando o ciclo de contágio, ainda que indiretamente, limitando o processo de imunização nos primeiros meses do ano e gerando frustração na população, ansiosa por se “blindar” o quanto antes contra o vírus letal, que já levou quase meio milhão de vidas desde o início da pandemia, em março de 2020.


Procurada pelo Estadão para falar sobre a questão e outros temas ligados à produção e à entrega da vacina contra a covid, a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, não quis se pronunciar, alegando não ter “disponibilidade na agenda”. O repórter insistiu, afirmando que estaria disposto a ajustar o cronograma de produção da reportagem, para incluir os comentários e explicações de Nísia, mas não recebeu mais resposta da entidade. Mesmo assim, a reportagem traz em texto complementar as justificativas da Fiocruz e de seus gestores para a morosidade e os atrasos na produção e na entrega de vacinas, compiladas a partir de declarações e comunicados oficiais feitos nos últimos meses.   


“Até agora estamos praticamente só com o Butantan”, diz o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. “Quando o Butantã fez a parceria com a Sinovac e a Fiocruz com a AstraZeneca, todo mundo achava que a Fiocruz iria se dar melhor, mas o que acabou acontecendo foi o contrário”, afirma o biólogo Fernando Reinach, autor do livro “A chegada do novo coronavírus no Brasil” e colunista do Estadão. 


Os resultados apresentados até o momento pela Fiocruz parecem ainda piores quando confrontados com as promessas feitas por seus próprios dirigentes, que desde o princípio anunciaram projeções muito elevadas para a produção e entrega da vacina, desmentidas seguidamente pelos fatos. “Eles sempre tendem a prometer o melhor cenário possível – e na vida não é assim”, diz Reinach. “Nunca acontece o melhor cenário possível.” 


Logo depois da assinatura do contrato inicial com a AstraZeneca, por exemplo, a Fiocruz chegou a falar na produção de 265 milhões de doses da vacina em 2021 para entrega ao Programa Nacional de Imunização (PNI). No fim do ano passado, porém, a previsão foi reduzida em 20%, para 210,4 milhões de doses -- 100,4 milhões fabricadas com Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) importado da China e outras 110 milhões com IFA nacional, a ser produzido numa nova unidade industrial do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), vinculado à entidade, que está sendo construída só para isso.  


Em janeiro deste ano, a Fiocruz anunciou a entrega de 50 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca até abril e manteve a previsão mesmo quando as primeiras dificuldades para cumprir a promessa começaram a surgir. No mundo real, o número de doses entregues ao PNI no período ficou em 22,5 milhões, menos da metade. Em 5 de fevereiro, a Fiocruz prometeu entregar 15 milhões de doses em março. Ao final, a entrega foi de apenas 2,8 milhões de doses, o equivalente a 18,7% do prometido.


A entrega de vacinas produzidas com insumo nacional, inicialmente prevista para agosto, passou para setembro e agora dirigentes da Fiocruz já falam que só acontecerá a partir de outubro, comprometendo o cumprimento da meta definida para o segundo semestre (leia o quadro acima).


No fim, o excesso de otimismo da Fiocruz em suas projeções acabou por se voltar contra ela, numa espécie de “efeito bumerangue”, ao gerar desconfiança em suas previsões não só entre cientistas e profissionais de saúde, mas também na população, deixando alguns arranhões em sua imagem.


“Promessas não cumpridas diminuem a credibilidade e a confiança nas instituições”, afirmou o ex-ministro da Saúde, Nelson Teich, que deixou o governo antes de completar um mês no cargo por divergências com o presidente Jair Bolsonaro, em um comentário no Twitter. “A gente fica nessa lambança de gerar um otimismo exagerado e de querer agradar e deixar a população mais tranquila, mas as informações precisam ter base na realidade”, diz o senador Confúcio Moura (MDB-RO), presidente da comissão temporária do Senado que foi criada no fim de fevereiro para acompanhar as ações adotadas contra a covid.  


Um virologista que trabalha num centro de desenvolvimento de vacinas ligado a uma das principais universidades do País, que preferiu não se identificar, conta que as promessas não cumpridas da Fiocruz viraram tema de ironias e de comentários maldosos em grupos de pesquisadores e cientistas no WhatsApp. Médicos de diferentes especialidades ouvidos pelo Estadão tiveram reação semelhante. Um deles chegou a defender a privatização da Fiocruz, para torná-la mais eficiente.


Segundo o virologista, “a grande falha” da entidade foi “vender ilusões” à população em relação à vacinação. “A distância entre a expectativa criada e a realidade é absolutamente frustrante”, afirma. “A Fiocruz deveria ter admitido que a produção da vacina seria um processo muito mais moroso do que se acreditava”. 


Em sua visão, a experiência obtida quando houve um surto de febre amarela no País, há quatro ou cinco anos, deveria ter levado a Fiocruz a adotar uma posição mais conservadora em relação à produção e à entrega de vacinas contra o coronavírus. Na ocasião, de acordo com seu relato, a Fiocruz enfrentou dificuldades para elevar a produção de vacinas a toque de caixa, apesar de ser o maior produtor mundial do imunizante contra febre amarela, e teve de fracionar as doses para conseguir atender a demanda. 


“Desde o início, as projeções da Fiocruz para a produção da vacina Oxford/AstraZeneca no Brasil pareceram excessiva e perigosamente otimistas”, diz. “A gente sabe que a instalação de uma infraestrutura para produzir uma vacina nunca produzida no País precisa de mais tempo e de uma readequação mais intensa da linha de produção do que apontavam as projeções prometidas pela Fiocruz.”  


Para o cientista, as falsas expectativas criadas pela instituição tiveram também um efeito perverso no planejamento do processo de imunização. “Quando você tem uma expectativa e passa a considerá-la como um fato consumado, deixa de buscar alternativas para suprir a demanda que deixará de ser atendida, como a compra de mais vacinas prontas ou de mais insumo importado para envasar as vacinas aqui.”


O excesso de otimismo da Fiocruz reflete, em boa medida, uma estratégia adotada pelo Ministério da Saúde em suas projeções. Como mostrou o Estadão em reportagem publicada na quarta-feira, 5, o governo anunciou ter comprado 560 milhões de doses de vacina contra covid, mas até agora só contratou 281 milhões, ou seja, a metade. 


É difícil dizer, ainda assim, o quanto os exageros nas previsões se devem a um comprometimento dos gestores da Fiocruz e de Bio-Manguinhos com o governo e qual a liberdade que têm para assumir as limitações técnicas e logísticas para cumprir a missão que lhes foi conferida. 


Não está claro se as promessas que eles fizeram foram forçadas por um governo que precisava dar respostas urgentes à sociedade contra a pandemia ou se foram resultado da percepção de que era mesmo possível cumprir as previsões que divulgaram ao longo do tempo. De um jeito ou de outro, é certo que, se tivessem adotado uma postura mais realista, não precisariam perder tanto tempo agora dando explicações sobre atrasos na produção e na entrega das vacinas nem teriam exposto tanto a Fiocruz às críticas de cientistas e médicos do País e da população de forma geral. Estadão

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