Pouca gente sabe o que me motivou a seguir a carreira de professora. Minha profissão foi decidida no banheiro feminino da Escola Polivalente de Camaçari, numa manhã de quarta-feira, entre o intervalo de uma aula pra outra. Naquele ambiente insalubre, fétido de urina, excrementos e criolina a história da minha vocação profissional nasceu desde muito cedo, pois eu era aluna da antiga 5ª série do ginásio.
Meu pai havia falecido. Eu fiquei muito abalada, obviamente e, por este motivo, passei uma semana sem frequentar as aulas. Quando retornei, a professora de Matemática, que costumava dar ‘vistos’ nos cadernos, viu meu caderno sem as atividades. Eu tentei explicar a ela o ocorrido, o motivo pelo qual eu havia faltado, falei do falecimento do meu pai... Mas ela não me deixou nem argumentar e lhe mostrar o que estava ocorrendo em minha vida. E a resposta veio, e com toda frieza possível:“O que eu tenho a ver com isso? Não fui eu quem matou o seu pai!”...Chorei feito um condenado a morte. Me senti pior do que um cachorro abandonado. Silenciei minha dor e tive que engolir o choro, a culpa, a vergonha. Me senti tão humilhada que meus ouvidos taparam, minhas vistas embaçaram, e meu rosto queimava envergonhado. Chorei muito.
Aquilo marcou demais minha vida. Eu era apenas uma criança da quinta série, que havia acabado de perder o pai. Foi no banheiro, quando pude chorar que decretei: vou estudar para ser professora e tratar meus alunos de forma humana e carinhosa. Vou considerar suas histórias de vida e vou lutar pelo respeito de suas bagagens e trajetórias. Foi na dor, no sofrimento, na humilhação, no racismo que decidi seguir a carreira que valorizo e respeito.
E comecei a fazer disso meu objetivo e propósito de vida. Fiz da humilhação, o meu projeto positivo de profissão. Durante meus anos letivos, eu era uma aluna muito tímida e tinha dificuldades de falar em público, de fazer muitas amizades. Geralmente ficava no canto da sala e só me comunicava com quem ficava mais próximo a mim. Sempre estudei em escola pública e fiz Universidade pública também.
Estudei no Centro Educacional Maria Quitéria de 1983 a 1989, na Escola Polivalente de Camaçari de 1990 a 1994, na Escola Municipal São Thomaz de Cantuária de 1995 a 1997 e na Escola Normal de Camaçari de 1996 a 1998. Cursei o magistério, a faculdade de Pedagogia e consegui realizar meu sonho, aquele que decidi ainda na quinta série.
Hoje, penso que no mundo educacional do qual faço parte, os prazeres são inúmeros, mas o principal deles é ver o crescimento acadêmico, profissional e humano dos alunos que passam por mim. Adoro ouvi-los relatando que a aprendizagem foi mais significativa comigo e com eles.
Quanto a professora de matemática que me humilhou, me discriminou, sim, eu não a perdoei. Não vou perdoar, nunca mais soube nada dela. Tomara que tenha deixado de ensinar. Tomara que já esteja descansando. E não se atreva a me pedir pra perdoá-la. Você não estava lá comigo pra saber como eu estava e o que aquilo representou pra mim. Não me peça pra esquecer e superar pois essa ferida não sarou, sua cicatriz é profunda e vez ou outra ainda sangra.
Mas é olhando pra essa ferida que ganho força pra seguir lutando pelo direito de existir dos meus alunos. Eu ainda choro quando relato essa história, quando me lembro de como me senti só, de como me doeu saber que se eu fosse branca rosadinha de cabelo liso padrão boneca eu não passaria por isso. Aos meus alunos eu digo: hoje sou Cosme de Farias graças à receptividade que vocês me deram, vim de uma escola pequena que não tinha um terço dos problemas que encontrei aqui, e eu tinha tudo para desistir desse lugar, mas, o brilho nos olhos dos meus alunos foi a força que precisava para ficar e continuar.
São crianças fortes, inteligentes, dinâmicas, com sede de aprender, esforçadas em grande parte e que gostam de estar aqui, defendem esse lugar e sonham com uma escola melhor. Eu tenho o real privilégio de trabalhar em uma escola com ‘alma’ de escola. O que isso significa? Significa que escola tem de ser um lugar onde as pessoas sintam vontade de estar ali, de ver as pessoas de viver suas histórias, de se importar com todos, de se preocupar com o outro, de cuidar de gente. Obrigada pelas felicitações. Obrigada por serem os melhores. Muito obrigada!
Edicleia Pereira Dias é professora, diretora da Escola Municipal Cosme de Farias (Camaçari), especialista em Educação e Erradicação da Pobreza (UFBA), coordenação pedagógica (UNIFACS)
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